No abismo azul-turquesa, onde a luz do sol se desfaz em mil prismas sobre o recife de coral, vivia Kael. Kael era um peixe, um exemplar de escamas iridescentes e barbatanas delicadas, mas carregava um segredo que o tornava uma anomalia no seu mundo: Kael não sabia nadar.
Para os seus pares, o nado era tão instintivo quanto a respiração. Era a linguagem do oceano, a dança da sobrevivência, a prova inegável da sua essência. Observavam Kael, que se arrastava pelo leito marinho, impulsionando-se com pequenos e desajeitados movimentos das suas barbatanas peitorais, e a incompreensão era palpável. O nado representava a ação natural por excelência, o fundamento da vida aquática.
Kael sentia o peso da água, uma pressão constante que para os outros era um abraço fluido, mas para ele era um fardo esmagador. Ele via os cardumes a moverem-se em uníssono, uma sinfonia de prata e azul, e sentia-se um erro de cálculo da natureza. Na sua perceção íntima, ele era um cristal quebrado. A sua estrutura, embora bela e complexa, falhara na sua função mais básica, aquela que definia a sua pertença à espécie.
Esta condição era uma metáfora cruel. Assim como existem seres humanos que tropeçam na mais simples das interações sociais, que não conseguem erguer-se da cama para enfrentar o dia, ou que se afogam em emoções que deveriam ser apenas correntes suaves, Kael não conseguia flutuar. Eram as almas que, apesar de pertencerem à espécie, carregavam uma falha invisível, uma fissura na sua constituição que as impedia de realizar o que era considerado o mínimo existencial da humanidade.
Um dia, Kael encontrou uma anémona solitária, cuja sabedoria era tão antiga quanto as rochas do fundo. A anémona, sem se mover, observou o peixe a lutar contra a corrente, a sua exaustão evidente.
"Por que te esforças tanto para ser o que não és?", perguntou a anémona, com uma voz que parecia o sussurro das marés.
Kael parou, as suas escamas a tremer. "Eu sou um peixe. Devo nadar. Se não nado, sou inútil, sou apenas um erro da criação."
A anémona balançou os seus tentáculos suavemente, como quem acalma uma tempestade. "O oceano não te pediu para seres um nadador veloz. Ele apenas te deu a vida. A tua luta, Kael, não é contra a água, mas contra a expectativa do que um peixe deve ser. Tu és um peixe que caminha. A tua beleza não reside na fluidez do teu movimento, mas na coragem de te moveres de forma diferente."
Kael olhou para as suas barbatanas, que agora pareciam mais pés do que asas. Ele compreendeu que a sua condição de "cristal quebrado" não significava que estava arruinado, mas sim que a sua luz se refratava de uma maneira única. Ele não podia nadar, mas podia ver o fundo do oceano com uma clareza que os nadadores velozes nunca alcançariam, pois estavam sempre a olhar para a frente, impulsionados pela velocidade.
E assim, Kael, o peixe que não sabia nadar, continuou a sua jornada. Não mais com a vergonha de um erro, mas com a dignidade de quem compreende que a natureza humana (ou pisciana) não é definida por uma lista de capacidades universais, mas pela aceitação da sua própria e singular forma de existir. Os "cristais quebrados" não são menos valiosos; eles apenas refletem a luz de um ângulo que o mundo, obcecado pela perfeição da forma, ainda não aprendeu a apreciar. A sua beleza reside precisamente na sua singularidade resiliente.
FIM
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