O Colecionador de Corotes
A névoa de São Paulo era tão densa quanto a moralidade de seus habitantes, e o Inspetor-Chefe Horácio Pinguço, um homem de barba rala e olhar de quem já viu demais, esfregava as mãos sobre a lareira. Ao seu lado, a Agente Especial Plástica, uma jovem detetive de métodos modernos e uma aversão notável a qualquer coisa que não fosse destilada, examinava a última evidência com um par de pinças.
O caso era bizarro, até mesmo para os padrões da América Latina, onde o surrealismo era a regra, não a exceção. Um serial killer, apelidado pela imprensa de "O Colecionador de Corotes", aterrorizava a região, deixando um rastro de vítimas em capitais tão distintas quanto Buenos Aires, Lima e, agora, São Paulo.
As vítimas tinham um perfil peculiar: eram sempre indivíduos de baixa renda, encontrados em vielas escuras ou praças desertas, e todos tinham em comum o consumo de uma bebida alcoólica barata, doce e engarrafada em plástico, popularmente conhecida como "pinga de sabor" ou, no Brasil, "corote". O modus operandi era sempre o mesmo: a vítima era morta por envenenamento ou asfixia, e o assassino levava consigo apenas a garrafa plástica vazia, deixando para trás o corpo e, ironicamente, a tampa.
"A tampa, Agente Plástica," resmungou Pinguço, dando um gole em seu café. "É a assinatura dele. Por que levar a garrafa e deixar a tampa? É um escárnio, um enigma de mau gosto."
"É mais do que isso, Inspetor," respondeu a Agente Plástica, com a voz firme. "A tampa é a chave. Observe esta, encontrada ao lado do corpo de 'Seu Zé', a vítima de ontem. É uma tampa verde-limão. A bebida que ele consumia era 'Limão Selvagem', um Corote de terceira linha. Em Buenos Aires, a vítima bebia 'Pêssego Fatal', e a tampa era laranja. Em Lima, 'Morango Proibido', tampa vermelha. O Colecionador não está apenas colecionando as garrafas; ele está catalogando as cores."
Pinguço franziu a testa, a fumaça do seu cachimbo pairando no ar. "Catalogando? Como um filatelista de bebidas de baixo custo?"
"Exatamente. Ele está montando um arco-íris de miséria. Cada garrafa representa uma cor, um sabor, uma marca diferente de bebida plástica consumida na América Latina. É uma coleção sistemática, Inspetor, e ele só para quando tiver a paleta completa."
A investigação levou a dupla a um submundo de distribuidores de bebidas e pequenos bares. A Agente Plástica, usando seus conhecimentos de química forense, descobriu que o veneno usado era um composto orgânico raro, difícil de rastrear, mas que deixava um resíduo sutilmente adocicado na bebida.
"O assassino não está apenas matando os consumidores," deduziu Pinguço, "ele está substituindo o conteúdo da garrafa. Ele compra a bebida, injeta o veneno, e a devolve ao ciclo de distribuição, sabendo que alguém a beberá."
A pista decisiva veio de um pequeno detalhe. A Agente Plástica notou que, em todas as cenas de crime, havia um pequeno pedaço de papel, quase invisível, preso à etiqueta da garrafa. Não era um bilhete, mas um fragmento de código de barras.
"Inspetor, o Colecionador não está comprando as garrafas em qualquer lugar. Ele está comprando em lotes específicos," ela explicou, ligando os pontos. "Este fragmento de código de barras é de uma distribuidora de bebidas de luxo, que, ironicamente, também vende as marcas mais baratas para cumprir cotas."
Eles invadiram a distribuidora. O local era um labirinto de caixas e garrafas. No fundo, em uma sala refrigerada, encontraram o que procuravam: uma estante de colecionador, perfeitamente iluminada, com dezenas de garrafas plásticas de bebidas baratas, organizadas por cor e sabor. A coleção estava quase completa. Faltava apenas uma cor: o azul-celeste do sabor "Menta Glacial", popular no Chile.
Ao lado da estante, um homem de terno impecável e óculos de aro dourado, o Dr. Ernesto "O Enólogo" Valença, proprietário da distribuidora, estava limpando a última garrafa azul-celeste com um pano de seda.
"Dr. Valença," disse Pinguço, acendendo o cachimbo. "Sua coleção é impressionante. Mas por que o assassinato? Por que essa obsessão?"
O Dr. Valença sorriu, um sorriso frio e estudado, digno de um vilão de Agatha Christie.
"Inspetor, eu sou um purista. Eu dediquei minha vida ao vinho, à arte da destilação. E o que vejo? Essa... aberração," ele gesticulou para as garrafas plásticas. "Esses líquidos sintéticos, adoçados, vendidos em embalagens que poluem o meio ambiente e destroem o paladar. Eu não estava matando pessoas, Inspetor. Eu estava eliminando a evidência do mau gosto. Cada garrafa que eu removia era um passo para limpar o mundo dessa praga plástica."
"E as tampas?" perguntou a Agente Plástica.
"Ah, as tampas," ele suspirou, com um brilho de loucura nos olhos. "As tampas são a prova de que o crime foi consumado. A garrafa vazia, sem a tampa, é um objeto de arte. A tampa, no entanto, é lixo. Eu as deixava para que soubessem que o ciclo estava completo. A garrafa, a essência do mal, era minha. O lixo, a tampa, ficava para o mundo."
O Dr. Valença, o purista enlouquecido, foi preso. A coleção de Corotes foi apreendida como prova. Pinguço e a Agente Plástica deixaram a distribuidora, a névoa se dissipando lentamente.
"Um final clássico, Agente Plástica," disse Pinguço. "O assassino era o menos suspeito, o homem de posses, motivado por uma perversão intelectual."
"Sim, Inspetor," ela concordou, olhando para o céu que começava a clarear. "Mas a verdadeira tragédia é que, enquanto ele colecionava as garrafas, a América Latina continuará a produzir e consumir o conteúdo. O Colecionador de Corotes foi pego, mas a epidemia plástica continua."
E assim, o caso foi encerrado, deixando para trás apenas o cheiro doce e enjoativo de álcool barato e a certeza de que, no mundo do crime, a verdade é sempre mais estranha, e mais amarga, do que a ficção.
FIM
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