O Vale dos Santos Surdos
No Vale de Aethel, não havia muros de pedra, mas ninguém ousava sair. As fronteiras eram traçadas pelo medo e vigiadas pelo "Livro das Sombras", um tomo antigo escrito não por deuses, mas pelo tataravô do atual Sumo Sacerdote, Malacai.
Malacai era um homem de sorrisos contidos e olhos que calculavam o peso da alma alheia. Ele sabia o segredo que mantinha o Vale funcionando: o povo não queria a verdade; o povo queria a certeza.
O réu daquele dia era Elias. Seu crime? Havia plantado trigo na lua minguante, desafiando o Versículo 4 do Capítulo da Colheita. Segundo o dogma, isso atrairia a Ira Divina sobre toda a vila.
Elias foi arrastado para a praça central. A multidão, composta por padeiros, ferreiros e mães com crianças de colo, formava um círculo apertado. Havia uma fome nos olhos deles. Não fome de pão, mas fome de culpa alheia. Enquanto apontassem o dedo para Elias, seus próprios pequenos pecados — a inveja do vizinho, a mentira contada à esposa — permaneciam invisíveis.
— Você desafiou a Ordem — trovejou Malacai, do alto de seu púlpito de madeira nobre. — Você colocou todos nós em risco por sua arrogância.
Elias, com as mãos amarradas e joelhos sujos de terra, levantou a cabeça. Ele não via Deus nos olhos de Malacai; via apenas um gerente de rebanhos.
— Eu plantei porque meus filhos tinham fome — disse Elias, a voz trêmula mas audível. — A terra não se importou com a lua. O trigo cresceu forte. Onde está a punição do céu?
A multidão arfou. O questionamento era o maior dos pecados.
— O castigo não veio porque nós, os puros, oramos por você! — retrucou Malacai, rápido como uma serpente. — Mas a insolência exige correção. A Lei é clara.
Malacai não precisava sujar as mãos. Ele apenas fez um gesto. A massa, que terceirizava sua moralidade para o Sacerdote, pegou as pedras. Era fácil. Jogar a pedra era um ato de alívio. "Eu puno, logo sou justo", pensavam.
— Esperem! — gritou Elias. — Olhem para o Sacerdote! Ele come do melhor grão, dorme na melhor cama e nunca tocou numa enxada. Ele escreveu as regras para que vocês trabalhem e ele governe. Vocês não têm medo de Deus; vocês têm preguiça de serem livres!
Houve um silêncio terrível. Por um segundo, a engrenagem travou. O ferreiro olhou para a pedra em sua mão. A dúvida, perigosa e fria, tocou a nuca de alguns. Se Elias estivesse certo, então todo o sofrimento deles não era uma provação divina, mas uma exploração humana. A responsabilidade de suas vidas cairia de volta sobre seus próprios ombros. O peso da liberdade seria esmagador.
Malacai percebeu o vacilo. Ele conhecia a antropologia do seu rebanho melhor do que ninguém.
— Ele chama vocês de tolos! — gritou o Sacerdote. — Ele diz que o sacrifício de vocês não vale nada! Quem é ele para julgar a tradição dos nossos pais?
O ódio voltou, mais forte, para cobrir o medo da liberdade. A preguiça de pensar venceu. Era muito mais fácil ser um executor obediente do que um homem livre e confuso.
— Culpado! — gritou a primeira mulher.
— Herege! — gritou o segundo homem.
As pedras voaram. Malacai sorriu discretamente e virou as costas, voltando para seus aposentos onde o vinho era fresco. Julgar era fácil. Ser julgado era mortal. Mas governar aqueles que se recusavam a pensar?
Aquilo era divino...
Raciocínio: A Arquitetura do Controle e a Terceirização da Consciência
A narrativa acima ilustra a intersecção crítica entre sociologia, antropologia e a crítica à religião institucionalizada que você propôs. Abaixo, detalho os mecanismos desse processo:
1. A Sociologia da Dominação: "Os Espertos Arquitetaram"
A premissa de que a religião (especialmente em estruturas hierárquicas rígidas) é uma construção humana para controle social alinha-se com o pensamento de sociólogos clássicos e filósofos materialistas.
* A Ferramenta de Poder: Não se trata da existência ou não de uma divindade metafísica, mas do uso da instituição como braço político. Ao codificar regras morais que beneficiam a manutenção do status quo (obediência, dízimo, não-questionamento), a elite sacerdotal (os "espertos") cria um sistema onde a rebelião contra o líder é equiparada a uma rebelião contra o Universo/Deus.
* O Monopólio da Verdade: Em religiões monoteístas dogmáticas, existe apenas uma verdade e um caminho. Isso centraliza o poder. Quem detém a interpretação do texto sagrado detém o poder absoluto sobre a vida e a morte (social ou física) dos fiéis.
2. Antropologia do Bode Expiatório e Punição
Por que a multidão apedreja Elias? A antropologia, especialmente através de René Girard, explica o Mecanismo do Bode Expiatório.
* Coesão Social pelo Sangue: Sociedades sob tensão acumulam violência interna. Para não se destruírem, elas projetam essa violência em um indivíduo "diferente" ou "transgressor".
* O Ritual de Julgar: O ato de julgar e punir coletivamente cria um sentimento de pertencimento. "Nós somos os bons porque punimos o mau". Isso é muito mais fácil do que a introspecção moral. Julgar o outro valida a própria retidão sem exigir esforço de melhoria pessoal.
3. A Psicologia da Preguiça e a Fuga da Liberdade
Aqui entra o ponto crucial do seu raciocínio: a culpa não é apenas dos "espertos", mas da "preguiça" das massas.
* O Medo da Liberdade (Erich Fromm): O filósofo e psicanalista Erich Fromm argumentava que a liberdade total gera ansiedade e solidão. Ter que decidir o que é certo ou errado a cada momento é exaustivo (fadiga de decisão).
* Terceirização da Consciência: A maioria das pessoas prefere a segurança da servidão à angústia da autonomia. Delegar o livre arbítrio a um livro, a um pastor ou a um dogma é confortável. Se algo der errado, a culpa é "da vontade de Deus" ou "do Diabo", nunca da escolha incompetente do indivíduo.
* Consequências Irreparáveis: Ao terceirizar a decisão, o indivíduo também tenta terceirizar as consequências. Porém, quando a realidade impõe consequências irreparáveis (como a pobreza, a guerra santa ou a ignorância), o indivíduo entra em dissonância cognitiva, apegando-se ainda mais ao dogma para não admitir que foi enganado.
Conclusão
A frase "Julgar é fácil, ser a pessoa julgada é outra cousa" resume a assimetria de poder.
Quem julga, neste contexto sociológico, está protegido pela armadura da massa e do dogma. Quem é julgado está nu diante da complexidade da existência. A religião institucionalizada, sob esta ótica crítica, funciona como um anestésico para a angústia existencial: ela troca a difícil liberdade de pensar pela doce facilidade de obedecer.
FIM
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