O Livro Vermelho dos Homens
Diz-se que em uma era esquecida, muito antes da escrita e das cidades muradas, os humanos começaram a perceber diferenças curiosas entre seus próprios sangues. Uns resistiam a pestes, outros curavam-se mais rápido, e havia aqueles cujo sangue, ao se misturar com outro, causava rejeição. Não compreendiam os nomes "A", "B", ou "O" — não precisavam. Mas sabiam: havia linhagens sagradas, compatibilidades herdadas, pactos de sangue que selavam alianças ou traições.
Xamãs e líderes espirituais foram os primeiros hematologistas místicos. Usavam o sangue em rituais, acreditando que ele abriria portais para o além, comunicaria com espíritos, selaria encantamentos. Cada gota era um microcosmo — vida, morte e renascimento. Nos altos planaltos da Ásia, nos vales africanos, nas selvas da América, cultos surgiram reverenciando o sangue: às vezes como oferenda, às vezes como chave para o invisível.
Milênios se passaram. Com a civilização veio o Coliseu.
Ali, em Roma, homens se reuniam para assistir ao espetáculo da morte como se fosse teatro divino. O sangue jorrava na areia sagrada da arena, e cada respingo parecia alimentar uma fome ancestral. Por que se alegravam com o sangue? Por que batiam palmas enquanto um corpo exalava a última centelha? Alguns diziam que era catarse — outros, que era memória genética de antigos sacrifícios. A mesma substância que hoje causa desmaios em muitos, então era símbolo de glória e coragem.
Esse é o paradoxo: o mesmo sangue que hoje nos salva em transfusões — ciência que revela os tipos sanguíneos com precisão e respeita sua importância imunológica — era, para os antigos, um pacto entre mundos. Para uns, fonte de vida. Para outros, presságio de morte.
Os estoicos diziam que o sangue é quente por natureza porque carrega nossa paixão, nossa ira, nossos medos mais densos. Talvez, no fundo, saibamos que ao ver sangue derramado, vemos a alma encarnada escorrendo, nos recordando de nossa finitude.
Hoje, quando uma bolsa de sangue salva uma criança num hospital ou em uma emergência, é como se todos aqueles cultos antigos, todo aquele conhecimento empírico dos xamãs, encontrassem redenção na ciência.
E assim, o sangue continua a escrever sua história: em laboratórios, rituais esquecidos, arenas modernas — e nos contos que ousamos contar.
Autor: Alex Sandro Alves para o Blog O Dislexo Escritor
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